Análise do projeto nova luz

Tem no momento várias controversas em volta do projeto Nova Luz, no centro de São Paulo. O projeto visa a reformar um grande pedaço do centro, entre a Santa Ifigênia e a Luz, que é considerada uma região com potencial sub-aproveitado, isso é, que é importante porque é no centro, e poderia ajudar a redinamizar a área central toda, mas para isso deveria ter mais moradores, ou seja, mais pessoas "fixas", que ficam ali fora do horáriocomercial.

A objeção principal é que essa reforma vai desapropriar muita gente e que vários outros não conseguirão mais morar ali, porque o bairro vai "gentrificar", isso é, gente com mais dinheiro vão passar a morar ali e transformar tanto o bairro que vão acabar expulsando os moradores de baixa renda atuais. Também tem sérias objeções contra o mecanismo legal e imobiliário atrás desse projeto.

Tentei analisar o projeto, disponível na integra aqui, e as objeções que tem contra ele, principalmente este vídeo, e construir uma opinião mais justa possível. Contudo, é apena minha opinião, vale o que vale (não muito).

  • Primeiramente, olhei o projeto. O projeto e bastante bom. Não consigo entender porque a Raquel Rolnik chama ele de "tosco" no vídeo. Ele faz uma análise bem completo da situação existente, prevê coisas essenciais como infraestrutura, escolas e outros equipamentos públicos, prevê áreas que deverão ser mantidas acessíveis para pessoas de baixa renda (aluguel baixo, etc), e tem um monte de ideias interessantes como ruas permeáveis, quarterões que podem ser atravessados livremente por pedestres, ciclovias, praças bastante bem projetadas, etc. Francamente, boa sorte para fazer um projeto melhor. Pelo menos as propostas alternativas que vi até agora, como esta, não me parecem propor algo muito diferente...
  • Discordo de uma outra coisa que falam tanto no vídeo como em vários lugares da internet, que é que ali não deve ter um projeto de referência "internacional" mas sim de referência "brasileira". É claro que na arquitetura e no urbanismo tem uma parte local. Tem coisas que se fazem na Suécia que não podem nem devem ser feitas na Indonésia, todo mundo entende isso. Mas a arquitetura também tem uma parte universal. Porque um Indonésio não teria direito às mesmas condições que um Sueco? Por acaso o Sueco tem necessidades diferentes? Deve viver em uma cidade diferente? Acho que São Paulo é uma cidade de porte mundial, e podemos sim comparar as soluções propostas aqui com o que se faz em megalópoles similares ao redor do mundo, sem por isso descartar o lado local. Acho que a grande maioria dos urbanistas no Brasil como no resto do mundo sabe perfeitamente fazer essa distinção. Pelo menos, nesse projeto, não achei nada que me pareça inaplicável em São Paulo...
  • Aparentemente, a coisa principal que foi pedida aos autores do projeto foi: "Precisamos que vocês aumentem muito o número de moradores ali". Nessa questão também o projeto responde bem: Todos os números dobram, mas o "mix", a proporção entre moradores de renda baixa, moradores de renda alta, trabalhadores, comércio, continua a mesma. A área disponível para moradia (a área total de apartamentos) dobra também. Resumindo, o projeto faz o que foi pedido mas cuida em manter a diversidade atual da população do centro. Achei isso uma atitude muito correta.
  • Sobre a necessidade de aumentar a população dessa área, também acho válido. O centro de São Paulo carece de moradores. Como muitas áreas centrais de cidades grandes, ele foi totalmente "tomado" por comércios e escritórios, e hoje tem pouca gente demais morando la, e, a noite, as ruas esvaziam muito. Como ensina a Jane Jacobs, provavelmente a maior especialista que já teve sobre esse fenômeno, é fundamental ter moradores para ter um bairro equilibrado e seguro. Fazer isso na Luz realmente poderia ter um impacto enorme sobre toda a área central, e fazer com que o centro volte a ser habitado, e vire um pedaço de cidade equilibrado, seguro e dinâmico.
  • Sobre como o projeto responde a esse problema: A área atual tem 1 200 000 m² de área construída. Desse total, 900 000 m² (75%) são mantidos, e 300 000 m² (25%) são demolidos. Até ali, 25% pode ainda ser considerado alto. Nesses 300 000 m² demolidos, serão erguidos novos 1 000 000 m². No total, depois da operação, teremos em torno de 2 000 000 m². Considerando que vamos dobrar a área, ter que demolir só 25% da área inicial, até não é nada mal.
  • Olhando por um outro lado agora: esses 1 200 000 m² representem 900 prédios. Os 300 000 demolidos representem 550 prédios. Isso é, quase os dois terços dos prédios da áreas serão demolidos. Obviamente, no projeto, se prevê demolir um máximo de prédios "pouco importantes" (galpões, imóveis pequenos, etc) e manter um máximo de prédios "importantes" (onde tem muita gente morando, por exemplo). Isso explica esse número em parte: Representa muitos prédios demolidos, mas pouca área construída. Mas mesmo assim, é assustador pensar que dois terços dos edifícios serão demolidos. É enorme. Por mais que não represente tanta área (25%), é uma cirurgia muito destruidora na paisagem urbana. É necessário isso tudo para conseguir revitalizar um bairro?
  • Outro ponto preocupante, a palavra "desapropriação" (e suas variações) é citada apenas 5 vezes nas 200 páginas do projeto, o que me parece indicar que tentaram esconder o fato.
  • O problema da gentrificação é bem complexo e difícil de evitar. O mesmo fenômeno acontece aqui do lado (Frei Caneca / Augusta), sem nenhum plano do Kassab... Assim que se mexe alguma coisa na cidade, se refaz uma pavimentação, se coloca lixeiras, etc, a especulação imobiliária reage imediatamente. Os preços aumentam, e fica cada vez mais difícil para uma parte da população pagar o aluguel. Acho quase impossível fazer algum plano urbanístico desse porte sem que isso aconteça. O que se pede a um plano urbanístico é de tomar medidas para diminuir os efeitos disso, e até acho que este projeto faz isso mais ou menos corretamente, prevê áreas que deverão manter aluguéis baixos, prevê muitos apartamentos de tamanho variodo, etc.
  • As várias críticas ao projeto encontradas na net apontam atualmente o Kassab comoculpado principal. Ao meu ver isso é um engano terrível sobre quem é o inimigo aqui. O principal beneficiário dessa "reconstrução" não será ele nem a prefeitura (apesar dos substanciais lucros gerados pelas operações de desapropriação) mas as construtoras que receberão quarterões inteiros em "doação". Se trata na verdade de uma grande festa imobiliária. Terá grande distribuição de terra para todas elas. Depois da desapropriação, essas construtoras serão legalmente proprietárias das áreas desapropriadas, como consta na lei abaixo. Ali é para mim o ponto mais grave, um instrumento muito excepcional e perigoso como a desapropriação, que quando acontece deve acontecer somente por razão superior de interesse público, e o resultado da desapropriação se tornar propriedade pública (parque, centro cultural, escola, etc), aqui serve para "doar" prédios para empresas.
  • Um lei municipal (texto integral aqui foi promulgada para permitir a execução do plano todo. Essa lei não diz que as construtoras terão poder de expropriar (razão provável pela qual não deu certo a recente tentativa de impedir a lei, baseada nessa tese), mas mesmo assim contem trechos bem assustadores como a transferência de propriedade automática do expropriado para a construtora.
  • Por info, esse plano começou em 2004 (prefeitura de Marta Suplicy) e foi continuado por todos os prefeitos que seguiram, não houve ninguém para se opor ao projeto...

Aqui terminam mais ou menos as conclusões que tiro do projeto em se. Para resumir, acho que considerando tudo, é um bom projeto, equilibrado, que tenta propor, apesar do grande aumento da população de moradores, uma solução rica, complexa, e é cheio de ideias interessantes, e que respeita bastante bem a diversidade de população e usos atuais.

O grande problema, fora a demolição (com a consequente desapropriação) maciça que ele provoca, é a "arquitetura" legal atrás dele que permite a transferência automática de propriedade de dois terços dos imóveis para as construtoras que tomarão conta do lugar. O tamanho da demolição, 25% da área construída, não seria em se exagerada se fosse feita pelos próprios proprietários, e não imposta por cima. Imagino que é mais ou menos o que aconteceria "naturalmente", se o bairro ganhava meios e incentivos para fazê-lo ele mesmo. Eles também iam começar por vender os galpões velhos, depois os prédios pequenos, etc.. e chegaria provavelmente a um número similar. Leia também este artigo que tem uma opinião um pouco diferente da minha sobre essas operações urbanas...

Francamente não sei se atacas globais ao projeto terão muito efeito... Espero que se mobilizem gente suficiente para travar o processo "imobiliário" canibal. Acredito que o projeto ficaria válido mesmo diminuindo drasticamente a invasão das construtoras, talvez consigamos convencer alguém la "em cima"? Acho uma pena de jogar fora o bebê junto com a água do banho...

Disclaimer: Esse texto todo é apenas a minha humilde opinião, viu? Não é importante, ninguém vai seguir ela, não vale a pena começar uma guerra de ideias, ok? Isso dito sevocê tiver críticas interessantes ou ideias para acrescentar, por favor não deixe de coloca-las abaixo!